terça-feira, 24 de agosto de 2010

Existe homicídio sem o corpo da vítima? (por Luiz Flávio Gomes)

Caso o corpo de Eliza Samudio não seja encontrado é possível, mesmo assim, haver indiciamento dos suspeitos? É possível dar início ao processo (contra eles)? É possível haver pronúncia? (ou seja: o caso ser remetido ao julgamento do tribunal do júri). É possível que haja condenação final, pelos jurados, mesmo não sendo encontrado o corpo da vítima? Há homicídio sem o corpo da vítima?

Em regra (normalmente) nada disso é possível sem o encontro do corpo da vítima. Em regra. Excepcionalmente sim (tudo isso é possível). Quando? Quando as provas indiretas (testemunhais) sobre a morte da vítima (sobre o corpo de delito), somadas eventualmente com as provas indiciárias, forem indiscutivelmente convincentes.

São muitos os casos rumorosos no Brasil, nesse campo (não encontro do corpo da vítima). Um deles aconteceu no Rio de Janeiro, no início da década de 60 (século XX). O corpo desta vítima nunca apareceu. Ela havia acabado de se separar do embaixador brasileiro Manuel de Teffé Von Hoonholtza. Numa viagem com o advogado Leopoldo Heitor ela desapareceu. O advogado diz que ela foi sequestrada após um assalto. A suspeita pelo desaparecimento recaiu sobre ele. Ele foi julgado pelo tribunal do júri. Foi condenado num primeiro julgamento e absolvido no segundo. Cuida-se do caso Dana de Teffé (desaparecida desde o fatídico dia em que viajava com um advogado). O corpo nunca apareceu. O suspeito foi absolvido.

Há um outro caso também bastante famoso. Na comarca de Araguari-MG, dois irmãos (irmãos Naves) foram condenados injustamente por uma morte que não existiu. Quinze anos depois da condenação a vítima reapareceu. Nessa altura um deles já havia morrido dentro da prisão. Naquele episódio, ocorrido no ano de 1937, tal como esclarece Hélio Nishiyama, os irmãos Naves chegaram a ser absolvidos duas vezes pelo Tribunal do Júri, porém, após recurso da acusação, foram condenados a pena de 25 anos e 06 meses de reclusão pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (naquela época, o veredicto dos jurados não era soberano).
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Há outros casos (um PM no Distrito Federal e um juiz de direito em SP, por exemplo) em que os jurados ou juízes, mesmo sem o corpo da vítima, condenaram o réu.

Nosso Código de Processo Penal (art. 167) admite a prova indireta (testemunhal) quando o corpo da vítima desaparece. Por que existe essa regra processual? Para evitar a impunidade. Se essa regra não existisse bastaria matar a vítima e fazer desaparecer o seu corpo (para se garantir a impunidade). A doutrina avaliza esse direcionamento legal (Avena, Aury Lopes Júnior, Nucci, Tucci etc.). A jurisprudência também: STJ, HC 110.642, j. 19.03.2009; STJ, HC 79.735, j. 13.11.2007; STJ, HC 51.364, j. 04.05.2006; STJ, HC 39.778, j. 05.05.2005; STJ, HC 30.471, j. 22.03.2005; STJ, HC 23.898, j. 21.11.2002.

Sintetizando: a comprovação da morte da vítima (que constitui a materialidade da infração) exige prova direta (perícia do próprio corpo). Essa é a regra. Excepcionalmente, para suprir-lhe a falta (em virtude do desaparecimento dos vestígios), a lei processual admite a prova indireta (testemunhal). Um terceiro meio probatório sozinho, isolado (outros indícios da morte: sangue, cabelo da vítima etc.), a lei não prevê. Mas junto com a prova indireta (testemunhal) pode ser que vários outros indícios sejam encontrados (e provados). Nesse caso, tais indícios reforçam a prova indireta. Esse conjunto probatório indireto + indiciário pode alcançar o patamar de uma convicção que afasta todo tipo de dúvida. Isso pode gerar condenação.

A cultura jurídica anglosaxônica e norte-americana cunhou a expressão "beyond all reasonable daudt" (para além de toda dúvida razoável). Esse é o patamar que deve ser alcançado para que se afaste a presunção de inocência (do acusado). O jogo processual (futebolisticamente falando) começa 1 x 0 para o acusado (em virtude da presunção da inocência). Somente provas válidas e convincentes derrubam esse placar. Ademais, não bastam provas que deixam dúvida. No caso de dúvida o jogo probatório fica empatado (1 x 1). E a dúvida favorece o réu (in dúbio pro reo). Para se afastar definitivamente a dúvida a prova necessita transmitir convicção razoável (ou seja: a prova precisa expressar uma convicção "beyond all reasonable daudt" - para além de toda dúvida razoável).

O dilema é o seguinte: se o desaparecimento do corpo da vítima nunca permitisse condenação, estaria garantida a impunidade (ocultando-se o cadáver). Mas condenar sem o corpo da vítima pode levar a mais um crasso erro judicial (caso dos irmãos Naves). Nem impunidade, nem erro judicial. Os extremos devem ser evitados. Mas todo cuidado é necessário.

Como podemos evitar as posições extremadas? Colhendo muitas provas técnicas. Isso é tarefa da polícia científica (que está sucateada no Brasil, em geral). No caso Eliza, por exemplo, já existem provas testemunhais (embora dúbias). Também já existiriam alguns indícios (a vítima teria passado no sítio de Bruno, teria sido levada para uma outra casa onde teria sido executada etc.). Que se pode fazer mais? Provas periciais. Luzes e reagentes (luminol, por exemplo) podem descobrir manchas de sangue (não visíveis). Testes de DNA. Provas dos registros telefônicos (não se trata da interceptação telefônica). Manchas de sangue nos carros. Uso de luzes forenses para a descoberta de pelos, cabelos, fibras de roupas, impressões digitais etc. etc.

Uma coisa é certa: se as provas técnicas não foram obtidas validamente ou se elas não forem convincentes, o resultado natural do jogo processual é a absolvição (porque in dubio pro reo). Menos declarações espalhafatosas, menos grotescos espetáculos midiáticos e mais polícia científica: esse é o caminho do justo e do razoável! Fora disso, só vamos ver mais exploração da paixão popularesca vingativa (da qual a mídia, em geral, entende bastante).


Créditos:
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri. Mestre em Direito Penal pela USP. Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Co-coordenador dos cursos de pós-graduação da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

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