Foto: divulgação da polícia civil
Um manobrista de um estacionamento particular em Higienópolis, bairro nobre na região central de São Paulo, recebeu o carro de uma médica que trabalha na Avenida Angélica, mas, em vez de guardá-lo, acabou “emprestando” o veículo a dois amigos que queriam ir a Caieiras, na Grande São Paulo, na noite deste sábado (29). O que parecia uma irregularidade sem maiores consequências, já que a dona do veículo estava de plantão até domingo (30) e provavelmente não ia desconfiar de nada, se tornou uma tragédia irreparável. Um dos colegas do manobrista que dirigia o Kia Carens da pediatra teria feito uma conversão proibida na Estrada Velha de Campinas ao tentar ultrapassar uma carreta, que momentos antes havia derrapado e batido na lateral de um Fiat Palio Weekend. Ao fazer o contorno, o Kia teria ido para a contramão e colidido, de frente, com o Palio, que seguia no sentido correto.
Dentro do Palio estavam as jornalistas Ligia Maria Celeguim Tuon e Denise Pimentel Spera, ambas com 25 anos, e o professor de informática Bruno Tuon Perim, de 27. Denise e Bruno morreram por causa da colisão. Ela era a condutora. Bruno estava no banco de passageiros e era primo de Ligia. As vítimas foram sepultadas no domingo em Caieiras.
“Quando o delegado me ligou, estava no hospital atendendo uma criança em crise. Fiquei e ainda estou chocada realmente. Não sei o que dizer. Não sei o que passou na cabeça desse funcionário que tirou o carro de alguém. O estacionamento está me dando toda a assistência. Disseram que vão arcar com as despesas. Deu perda total. Mas o pior está do outro lado. Fico com pena dessas famílias que perderam seus filhos", afirmou a médica proprietária do Kia. Ela só aceitou falar com o G1 sob a condição de que seu nome não fosse divulgado.
"A gente sempre deixa o carro achando que ele está seguro. Agora terei de rever onde deixo meu carro. O estacionamento fica perto do trabalho. Trabalho lá há dois anos e nunca havia tido qualquer problema até agora”, afirmou.
Sobrevivente
A jornalista Ligia Maria Celeguim, única sobrevivente do Fiat, afirma que estava chovendo na hora do acidente e que a curva era muito perigosa. "Eu estava no banco da frente. Eu vi a carreta desarticulando em ‘L’, derrapou para nosso lado. Teve várias pancadas violentas. Para mim nem tinha outro carro participando do acidente. O motorista do caminhão parou um pouco à frente. Ele não me resgatou nem aos outros. Fiquei bastante machucada. Fiquei com labirintite. Lesionei o pulmão direito. O cinto queimou meu ombro e a barriga. Estou com bastantes escoriações. Eu não sei dizer se foi falha do motorista do caminhão ou do outro carro que bateu depois no veículo onde eu estava.”.
“Espero que haja justiça com o que ocorreu com minha filha, que os culpados respondam pelos atos errados que fizeram. Esses indivíduos que pegaram um carro indevidamente de uma médica em São Paulo e foram para Caieiras têm de responder pelo furto do veículo e pela morte da minha filha e do amigo dela”, disse Waldemar Spera, pai de Denise, que autorizou o G1 a divulgar a foto da filha.
A mulher dele, Vânia Spera, escreveu uma carta em memória da filha do casal, Denise. "No dia 30 de junho de 1986 Deus te colocou no mundo e no dia 8 de julho ganhei o presente mais valioso que o ser humano pode ganhar. Foi aquela “rosa” com olhinhos azuis, cabelinhos de fios de ouro, clarinha como a neve. Foi assim que te vi pela primeira vez. Desde este momento minha vida se transformou, foram só grandes conquistas, grandes realizações, momentos surpreendentes, tudo, tudo que o ser humano pede a Deus, e eu fui beneficiada com essa graça de receber de Deus a minha Denise", escreveu, em um dos trechos.
Formada em jornalismo pela Universidade São Judas Tadeu, Denise havia feito curso de inglês em Londres e estava trabalhando como consultora de marketing em uma empresa na capital paulista. “Ela era uma filha dedicada, não se cansava de estudar”, afirmou Waldemar, que analisa a possibilidade de entrar com algum processo contra o estacionamento onde trabalha o manobrista que “cedeu” o carro da cliente irregularmente para as pessoas que participaram do acidente com a carreta que resultou na morte de Denise e Bruno.
Investigação
O caso foi registrado na Delegacia do Centro de Caieiras. O manobrista Jhonatan Paulino Alves dos Santos, de 22 anos, seus amigos, Higor Costa Araújo e Nivaldo Castro, que estavam no Kia, e o motorista do caminhão, José Benedito dos Santos Filho, de 38 anos, foram responsabilizados individualmente pela Polícia Civil.
O manobrista Jhonatan foi indiciado nesta segunda-feira (31) por apropriação indébita por ter pego o carro da médica e entregue sem autorização dela aos dois colegas. Em depoimento à polícia, ele disse que os amigos queriam ir para uma festa em Caieiras.
Higor, que conduzia o Kia, e José Benedito, motorista da carreta, foram acusados pela polícia por homicídio culposo na direção de veículo automotor. Higor e Nivaldo ainda estão sendo responsabilizados por fugir do local do acidente sem prestar socorro às vítimas.
Como o caso envolve um crime culposo, sem intenção, a polícia não pediu a prisão dos investigados. Todos vão responder aos crimes em liberdade. Numa eventual condenação, a pena para cada um pode chegar até seis anos de prisão.
"Decidimos responsabilizar os dois motoristas pelas mortes. Ainda aguardamos laudos da perícia técnica que irá indicar outros detalhes sobre o acidente que serão incluídos no inquérito, como velocidade do Kia e do caminhão. E também saber quem atingiu primeiro o Fiat da jornalista", disse o delegado Fábio Lopes Cenachi, da Delegacia Central em Caieiras. Segundo ele, o motorista do caminhão não apresentava sinais de embriaguez e, por isso, não realizou nenhum exame de dosagem alcoólica. Já o condutor do Kia fugiu no sábado e só reapareceu um dia depois e, por esse motivo, também não passou pelo teste do bafômetro.
O advogado Nelsimar Pincelli, que defende Jhonatan, afirmou que seu cliente não irá falar com a imprensa sobre o caso. Em sua defesa, ele informou que o manobrista afirmou à polícia que emprestou o automóvel para os colegas. “Meu cliente tem acesso aos carros e acabou por uma infelicidade emprestando o carro de terceira pessoa para um conhecido dele. Ele está arrependido. Ele emprestou alguma coisa que não era dele. Ele jamais poderia prever esse tipo de evento. Foi demitido.”
O que diz o estacionamento
O manobrista Jhonatan trabalhava no estacionamento Rit, que fica na Avenida Angélica. O G1 procurou a assessoria de imprensa da AllPark Estacionamento, razão social do local, para comentar o assunto, que divulgou uma nota a respeito:
"Em esclarecimento sobre o furto de veículo ocorrido em garagem administrada pela Estapar, no dia 29 de outubro de 2011, a empresa informa: Ao tomarmos ciência de que o veículo da cliente havia sido furtado, imediatamente tomamos todas as providências necessárias para esclarecer os fatos. Desde o primeiro momento, oferecemos total suporte a cliente e nos responsabilizamos integralmente pelo ressarcimento do veículo, cuja reposição está sendo providenciada. Diante do sinistro, todas as providências administrativas foram tomadas pela Estapar. Os demais fatos acontecidos após o furto do veículo foram ocasionados por terceiros e cabe às autoridades competentes investigar e punir os eventuais culpados."
O G1 não conseguiu localizar Higor, Nilvado e José para falar sobre o caso. Em depoimento à polícia, os rapazes que estavam no Kia deram uma versão diferente da do manobrista e do motorista do caminhão. Segundo os amigos de Jhonatan, eles queriam o carro emprestado para levar uma criança a Caieiras. Sobre o acidente, eles disseram que a carreta estava atravessada na pista e o automóvel onde eles estavam bateu em seguida nela. Como eles estavam com uma criança dentro do carro e o veículo não era deles, fugiram.
Mas o condutor do caminhão disse que foi o Kia que colidiu com o Fiat, que, posteriormente, esbarrou no “cavalo” do seu veículo.
Fonte: G1.globo.com